dezembro 18, 2008

Lá em baixo ficou o meu heterónimo


Lá em baixo ficou o meu heterónimo
cidadão da República Portuguesa,
com o filofax cheio de compromissos
e alguns impostos para tratar.
Lá em baixo ficaram suspensas
as cadeias que me ligam às abstractas entidades do senhor Estado,
do senhor emprego
e à rotina estonteante de querer ser fiel
a uma família clássica numa sociedade de consumo,
quase afluente,
que é tão individualista quanto colectivista,
mais marcada pela violência do Leviathan hobbesiano,
pai do capitalismo e do estadualismo
do que pelo messianismo de Marx
ou pelo romantismo de Rousseau.

Por lá ficaram os cartões de plástico
que me situam nas teias de controlo do big brother
desse totalitarismo suave em que nos vamos escravizando,
do número fiscal, ao cartão multibanco,
da carta de condução às fichas dos seguros,
esses inúmero dígitos que nos procuram localizar,
prender, sitiar.
Apenas quero um breve intervalo de tempo
onde procure esquecer as coisas que todos os dias tenho de fazer, num quadriculado de horários, agendas, deveres,
prazos, projectos, programas e frustrações.

Mas o tempo não está para filosofices ou politiqueirices,
mas para sentir os pormenores da paisagem.
Ter a liberdade de um pássaro peregrinando a paisagem,
acariciar o chão de caruma
e percorrer o espaço destas matas que nos restam.
E, navegando a manhã, vou deitando para o lixo
o odor dos sonhos negativos que me atormentam.

Porque apetece continuar feliz
e poder olhar os outros, olhos nos olhos,
sem o calculismos dos que encenam
aquelas parecenças que destroem as chamadas relações sociais. Apetece esta saudade de mar,
as ondas pequenas do bom tempo,
a limpeza das areias infinitas
e os passeios na maré baixa, de falésia a falésia,
assim diante de quem sou.