dezembro 18, 2008

Numa rua qualquer desta cidade antiga

Numa rua qualquer desta cidade antiga,
com o sol doirando a sombra dos plátanos
e reflectindo-se suavemente
nas vidraças da casa em frente,
é nele que vou buscar a força que preciso
para reflectir por escrito
alguns pedaços de quem sou,
aqui sentado neste escrever-me,
rescrever-me e repensar-me,
sem a angústia típica da frustração.

Que ontem, salgadamente, voltei a ser gaivota
peregrina
que se assenhoreia de um qualquer ilhéu
abandonado,
onde, de velas pandas, me naveguei,
sustendo as cordas que me livraram de sofrer
um golpe da retranca.
Porque fui de mar em mar, dentro de mim,
conseguindo olhar de frente
as sombras da memória proibida,
lá passei para a outra margem, mas sem sair de mim.
Que apeteceu, à noite, sorver o frio da maresia,
quando a viagem me fez regresso ao lar.

E quem sou pôde sorver as vagas do que há-de ser.
E até conseguiu contar e recontar histórias da infância,
desde os professores primários todos
que me deram a cultura que ainda hoje tenho,
aos padres de Santa Justa, a minha igreja,
que não deixei de ter,
desde o padre Paulo que jogava bem à bola,
ao padre Hilário que era italiano e grande.

E me vieram sabores de pedra e talha dourada,
galhetas com vinho de missa
e o cheiro queimado do turíbulo
e o som da missa em latim
e o pequeno-almoço em casa dos padres,
com grandes canecas de café com leite
e torradas com pão de mistura,
que custava dezassete tostões.
Como se o tempo fosse afinal
uma permanência que, passando, nos relembra,
assim ficando vivo no fundo da memória.

Sabe tão bem contar-te e recordar-me,
das histórias de uma infância em que fui feliz
e me fez menino para toda a vida.
Mais os passeios que dava com meu pai,
para vermos futebol no campo da Arregaça
e nadarmos no Choupal.
Ou das conversas que tinha ao borralho da minha avó.
Ou dos brinquedos que eram rolos de madeira
dos velhos mata-borrões.
Ou as muitas tábuas e serradura
que sobravam da oficina do meu avô,
com o Ezequiel, sempre emborrachado,
mas bom filho de sua mãe,
ao Serafim, com tarocas de madeira e coiro,
bem circunspecto e cumpridor,
que tinha de educar a filha.
E na memória cabem as boas lembranças
das casas da minha aldeia,
quando não havia frigoríficos nem fogões a gás,
mas mosqueiros, salgas, grelhas e fogões a lenha,
que tinham daquelas batatas fritas em azeite,
cujo sabor nunca mais voltou.