dezembro 17, 2008

O que segue não é um desses livros pesadamente científicos em que me tenho perdido


O que segue não é um desses livros pesadamente científicos em que me tenho perdido, mas antes reportagens íntimas que pretendem ser uma breve peregrinação interior pelas sensações de uma viagem à volta das minhas circunstâncias, onde o sujeito escrevente tentou deixar de ser simples placa registadora das ocorrências, mas sem a pretensão de se assumir como uma máquina de projectar preconceitos e ideias feitas sobre esse terreno novo que calcorreou.

Pretendi apenas escrever ao sabor das ondas da realidade, descrevendo as sensações por que vou passando numa reportagem interior. Tive, sobretudo, a intenção de perder-me na multidão das coisas e das gentes que acontecerem, mas continuando a saber o de onde venho e o para onde vou, visionando-me como uma espécie de centro do mundo, à volta do qual vai girando todo o universo. Tentei, assim, procurar o universal no respeito pelas diferenças, acentuando o intraduzível de uma civilização estranha, para poder expatriar-me a partir das minhas próprias origens.

Estes escritos, se, por um lado, são marcados por quem, dentro da pátria, em pleno exílio, foi cultivado, pelo activismo da revolta política e social, sofre também dos excessos daquele lirismo bem lusitano, saudosamente melancólico, típico dos que, não tendo perdido o sonho, sentem o corpo sitiado pelas realidades de uma pátria que já não há.



Preciso de intimidade, de um qualquer cantinho para me escrever assim em directo, porque os escritos íntimos publicáveis só podem existir quando, entre o acto de escrevê-los e o de publicá-los, medeia o simples tempo de um clique que os lance mundo fora, nesta forma de comunicação quase imediatista, mas ligada necessariamente ao arquivo do eterno, que cada um guarda dentro de si.



Mesmo aquilo que por outros já foi pensado
tem que ser, por nós, repensado,
para lhe acrescentarmos a mais valia do actualismo,
o estampido de viver,
para lhe darmos a realidade das circunstâncias
e o sopro do nosso próprio eu.
Sem essa fluidez de vitalismo
não há corrente de pensamento
e apenas continuaremos a rastejar
nesta unidimensionalidade acrítica e não criativa
onde nos vamos estupidificando.

Sem imaginação não há efectiva razão. A palavra é sempre um rio que procura sua foz desde que brota da nascente. É sempre a procura do discurso, sempre a procura de si mesmo. Porque a palavra corre o texto em seu discurso, sem margens que a contenham, sem represas que a proíbam. E apetece ser palavra, ser corrente, águas de uma vida que ninguém detenha, ser palavra à procura da minha foz, à procura do sentido que deu para si mesma, no tempo do tempo voltar a ter seu tempo.



Talvez estes escritos não passem de confissões de um vencido da vida, de alguém que persiste em cumprir seus sonhos de menino-homem e que, sem ir à procura do tempo perdido, sonhando voltar atrás, ainda tem daquelas saudades de futuro que não se confundem com a procura de uma felicidade absoluta que já não há.



Do mesmo modo, nunca me moveram as utopias dos amanhãs que contam, preferindo o sentido de um destino por cumprir. Continuo à procura de um acordo comigo mesmo e por causa dessa lealdade básica, não temo poder vir estar em desacordo com todos os outros.



E aqui vos deixo este livro de um cúmplice manuscrever-me, neste prazer de uma escrita que sempre começou por ser a manuscrita, assim ao correr da pena, por sobre o tempo que passa. E neste anything book, o meu qualquer coisa será espraiar um pensamento à solta, livre das teias da metodologia científica e dos rigores do tratamento do texto doutoral, onde vou parando para me pensar, deixando de ser um simples joguete de um quotidiano saltitante. Neste parar para escrever-me, acariciando os pequenos nadas da existência.



Que neste tempo de ser e de sofrer,
há um intenso prazer nas frases que resguardamos em surdina, quando elas nos saem imprevistas,
quando as mãos escrevem mais rápidas do que o pensamento,
quando a pulsão de escrever-me
me obriga a ter de estar aqui,
diante do papel,
vencendo a tentação das outras tarefas
que tinha de fazer.
Sobretudo quando cansa usar o teclado mecânico
dessas máquinas de memórias, chamada computador,
quando apetece que as palavras se assumam
na beleza dos sinais que vão sulcando
estes cadernos cheios de folhas onde me devasso.

Sobretudo, este prazer de me escrever
e descrever
num qualquer caderno de folhas virgens,
onde temos que imprimir nosso viver,
onde temos que vencer
estas névoas do quotidiano
que nos impedem e proíbem
a procura,
quando podemos ser quem sonhamos ser
se o carácter resistir
e soubermos vencer
as penumbras que nos comprimem


Continuo bandeirante e sertanejo à procura desse qualquer coisa que não tenho e que me traga momentos de felicidade. Um qualquer sítio que me dê Deus, pátria, amor e casa, onde me possa reconciliar com o cosmos, os bichos, as belgas de terra, as águas das regueiras e o arvoredo da infância.



E apetece o escrever do português à solta, pelos grandes espaços das terras de fronteira, que não este português acotovelado nas restritas assoalhadas de prédios sem alma, periurbanos e pós-revolucionários. Desses que não entendem o Tejo como o estuário onde vão dar todas as aldeias e rios de Portugal.



Porque lá na pequena pátria onde nasci chamam à nascente da plácida ribeira que banha a minha aldeia e onde um dos braços passava por baixo da minha casa, olho marinho. E também eu dou à matriz das águas a fundura da foz procurada. Porque acredito que, por debaixo das areias onde gorgulham as bolhas da nascente, há misteriosas funduras que vão dar ao mar. Onde o princípio tem de ser o fim e o destino é nascer de novo, todos os dias, nessa procura da eternidade que desde sempre vivi.