dezembro 20, 2008

Navegar para a outra banda, derrubando a margem


Apetecia poder sair daqui, permanecendo aqui.
Olhar daqui, por dentro de mim,
sulcando quem poderei ser,
neste vaivém do sonho
que tenho
e não tenho.
Apetecia continuar a sentir o silêncio da beira rio,
viver o ritmo das águas vão batendo
nas pedras do cais,
ficar assim, nesta margem de mim mesmo,
onde posso passar sempre à outra banda.

Apetecia partir dentro de mim
para o meu próprio lugar achar,
agora que me vai doendo a nostalgia do exilado,
o estar aqui sem ser daqui,
e sem sequer me apetecer fingir que sou daqui.
Que meu lugar é ter lugar longe daqui,
em sítio de sereno viajar,
peregrinando pinheirais de bruma
e praias de areias longas.

Neste vaivém, onde estou quem não sou,
É em saudades que me volvo
e me converto.
Sei que sou quem não estou
e que apetecia largar de mim
a amargura de procurar viver
meu signo.
Porque tenho a noção exacta dos meus próprios limites,
da minha falta de força para suster forças
bem mais fortes do que os meus braços
e que, por isso, se quebra o encanto
daquela luz que brilhou em mim,
neste dias de sonho sofrido.

Foram lábios feitos navios


Sei que não dissemos a palavra amor,
mas também sei
que foi amar o que nos aconteceu.
Como aquele abanar do vento,
feito estampido,
que venceu os tímpanos do tempo.
Sei que só nós sabemos como foi
e que o segredo de nada dizermos,
tanta coisa nos disse,
nesses silêncios da noite.
E sei também que apetecia poder voltar
a ser essa breve viagem de mãos dadas,
de corpos dados,
quando dois seres que nunca se repetem
viveram um acontecer
que nunca mais será como foi
dessa primeira vez.


Houve um menino homem, em sua procura de viver,
farto de sustentar os pesos da angústia
que, em teu corpo de mulher menina,
procurou que acontecessem frutos, flores,
sombras nocturnas de primavera,
uma cama feita caruma seca de pinhal
e o tecto pleno de estrelas
num quarto aberto ao sinal do horizonte.

Apetecia o verbo amar no plural

Apetecia, aqui e agora,
Escrever, escrever-te
longa carta de amar-te,
assim letra a letra, sobre o papel,
com a força antiga e perfumada
de uma esperança viva, rediviva.
Apetecia não temer
dar nome ao proibido,
dizendo que são breves
as nuvens que nos toldam o sonho.
Apetecia ter a força inteira
de, contigo, reviver o mar sem fim.

Nesta luz a mais que me define


Dia de sol a rodos, nesta costa ocidental,
onde apetece saudar
a braveza do mar,
sentindo a luz solar, em sua carícia de força.
Neste dia de cristalina primavera,
nesta luz a mais que me define,
nesta viagem de sempre,
em que refaço as longas raízes da esperança,
a que, infelizmente, continua a faltar terra e muro.

O mistério de, contigo, ser mais eu

Apetecia ser contigo,
ser assim bem mais do que eu,
ser contigo,
ser o nós,
e ser por nós, à tua beira.
Ser contigo para ser mais eu,
e sermos, sem sinais de angústia,
nem restos empedernidos da invernia.
Apetecia, contigo,
olhar de frente
quem, na verdade, somos,
sem a carga dos versos por cumprir.

Que o vento me traga
quem na verdade sou.
Os sinais do sítio para onde vou.
As vagas de um mar por descobrir.
Sinais de silêncio,
restos de vento.
Que versos, dispersos, alumiem
quem na verdade sou.

Apetecia viajar à beira de quem fomos,
de quem somos,
perto do rio
que em seu vaivém
nos deu corrente.
Ter suave vertigem do amanhã,
brasa de um fogo por cumprir,
risco de um além
que talvez um dia possa ser,
nesse tempo por cumprir.




Apetecia ser contigo,
assim à tua beira,
sem sinais de angústia,
nem restos da empedernida invernia,
para sermos mais do que nós.
Apetecia, contigo, olhar de frente
quem, na verdade, somos.

Para que o vento nos traga
sinais do sítio para onde vamos.
Em versos, dispersos, por cumprir,
que nos dêem as vagas de um mar por descobrir.

Apetecia viajar à beira de quem fomos,
perto do rio que em seu vaivém nos deu corrente.
Para voltarmos a ser
a suave vertigem do amanhã,
a brasa de um fogo que nos dê
o dia que há-de ser.

Apetece fugir para te encontrar


Apetecia descobrir esta cidade que reprimi,
dizer todas as palavras proibidas
que, em segredo, me revolvem.
Viajar todos os recantos,
todos os sítios que ainda se resguardam
e que não sei.

Apetecia, em suma, viver e reviver
os longos silêncios desta procura.
Estar assim contigo, de mãos dadas,
olhos nos olhos,
decifrando o mistério de um tempo que pode-ser.

Sonho e sofro o reviver,
os passos de um novo tempo
que, por dentro, já é ser.
O tempo de um templo por cumprir,
quando tuas mãos me dão sinal
da palavra original.

Sei que somos e que sofremos
os passos todos que não demos.
Na simplicidade de cumprir
o nosso sonho, vamos semeando
na terra prometida, que tem de ser,
um lugar onde.
Viver e reviver
os longos silêncios desta procura.



Se eu pudesse voar sobre quem somos,
vencendo o medo que tivemos dentro de nós.
Se pudesse chegar o tempo de dizermos mais,
o que um ao outro jamais dissemos.
Nas mãos a que nos demos e onde tecemos,
dedos cruzados, o calor que há-de vencer
o frio da espera.
A noite não terá fim nesse cais suspenso sobre o lodo
e em teu corpo deporei a flor do tempo que virá.


Que só contigo eu sei dizer amor,
olhos nos olhos, viver amor,
corpos nos corpos,
sem ter que me esconder
de quem na verdade sou.

Chegou, de repente, um pedaço de céu azul

Chegou, de repente, um pedaço de céu azul.
E o meu irmão pardal escapou-se
largando o espaço
onde minhas mãos o poderiam acariciar.
Apeteceu-lhe também não ter gaiola,
horários, calendários e agendas
nesse ter que fazer, para se fingir viver,
entre cartas de bancos, declarações de impostos
e outras algemas de uma cidadania
de trabalhador por conta de outrem,
beneficiário e contribuinte
por causa da assistência na doença
e subsídio para o funeral
deste belo Estado de Bem Estar.

E lá vem o sol, antes de ser poente.
E toda a barra fica plena deste azul de Lisboa,
desta luz a mais que nos dá desejo
de viver intensamente,
apetecendo sentir a música que me chega
destes sinais de primavera.
É a luz que me alumia e me dá sonho.
E força para vencer as nuvens e penumbras
que me toldam o silêncio.

E fui ao fundo das águas.
E, livremente preso,
me veio o doce prazer do movimento,
de poder cumprir o desafio de atravessar o rio
que nos separa.
Navegar para a outra banda,
derrubando a margem,
nesta procura por onde me vou buscando,
neste prazer de viajar em mim,
dentro de mim,
dando o meu corpo ao movimento,
em busca de um sonho que não acho.
E assim disperso pelos pedaços de vida
que, apesar de vivida, continuo a procurar,
fui peregrinando rumo à linha que limita
a minha vida,
esse risco de bruma que vai além
do que sinto e penso.

Que apetecia viver e reviver,
procurar longe daqui,
um qualquer lugar que apenas fosse meu,
um lugar onde pudesse regressar
a quem na verdade sou.
O lugar onde poisar meu verso,
a palavra prometida
que resguardo em sonho,
mesmo quando penso deter
as mãos fechadas que me dão revolta.
E sempre este sonho de procurar quem somos,
nas ruas abertas à brisa suave.

Da procura de um amor feliz


Sempre a espera que antecede
o momento da procura,
um rio, o vento,
o barco que passa,
o sítio mais estreito
que nos dá passagem.
Uma barca que nos leve além,
para ficarmos bem mais perto
desse pedaço de sonho
que se guarda em mim.
No apetecer de um tempo descoberto,
na sagrada procura de um sinal
que me dê sonho,
na espera sentida de um tempo que me dê alento.
Sou quem sonho, as mãos sustenho
sem palavras que descrevam o momento.
O breve sinal que me deu alma.
E as mãos contenho, devagar.
Que aqui quem sonho me deteve
à beira de um tempo que não foi.
Ouve, deixa que te diga
o que, no fundo me apetecia,

nesta ternura de ainda termos cumplicidade.
Deixa que te diga que ainda vale a pena
o segredo que nos arrasta livremente
pelos breves meandros da felicidade.
E apetecia escrever-te sem peias,
deixar aqui o nome que soletro, mas não registo,
com medo que vasculhem estes papéis.
Quanto apetecia dizer-te profundamente,
que é por tua causa que aqui me vou escrevendo,
para que um dia, quando voltarmos a quem na verdade somos,
nus e secretos,
num qualquer lugar que nos dê futuro,
teus olhos possam estas linhas percorrer.
Quanto apetecia que estas palavras pudessem
despertar quem sou,
que, mesmo depois de morto,
nestas palavras eu possa, através de alguém
que isto mesmo sinta, me eternizar.
Que, com alguém, sentindo o meu sentir de agora,
possa voltar, um dia,
a eternidade que, humanamente senti,
na brevidade desta vida.
Que tua cumplicidade sentida
possa despertar-me das brumas da memória,
em nome do amor.
Aqui me espero à tua espera.
Nesta casa onde apetecia que viesses
para desbravarmos a noite.
Para, diante da lua,
poder seguir
a cartografia do teu corpo,
decifrando todos os sinais que me dão rota.
É a noite que vai seguindo seus passos,
nesses longos caminhos que apetece peregrinar,
nestas viagens de me olhar por dentro,
de me olhar para dentro.
É o tempo.
O muito tempo que me apetece,
para que o tempo não finde
e seus sinais me não dêem a longa esperança da viagem.
E apetecia seguir contigo,
ser contigo,
para sempre viver contigo.
Como dói saber que o tempo me consome
e nos consome

Ter um qualquer lugar que me dê lugar


Sinto que necessito, aqui e agora,
de umas quaisquer mãos livres
que me dêem espaço
para um qualquer lugar no mapa dos sonhos.
Um qualquer signo
que me possa transportar
para novos dias,
diante de quem sou.
Dias de quem, na verdade, sou.

Ter um qualquer lugar que me dê lugar,
que não esta espera sem mãos de espera,
este desejo de ficar e de sofrer.

Olho através da janela o pequeno pinheiro,
o melro de bico amarelo, avermelhado,
as flores vermelhas da jardineira,
a água da ribeira e o céu inteiro sem uma nuvem sequer. E sabe tão bem sentir, no azul da rua, a mesma cor que tenho dentro de mim. Sabe tão bem sentir a vinda de mais um dia e apetecer vivê-lo, na paz inteira, sem que as nuvens do remorso e do pecado me toldem a memória.


Perdi o meu amor, por desejar ir além
das mãos que me prendiam,
quando, na curva de um caminho
que, afinal, já não havia,
me volvi.
Renunciámos ao azul do mar,
das águas correntes,
das sombras frescas.
Sinto que a Primavera não vai voltar,
nem depois de sofrermos a invernia.
Não posso continuar a sofrer a dor de não saber,
de todos os dias ter que conhecer
memórias de tempos que não quero conhecer.

Preso no lodo,
envolto em dor,
foi por ti que chorei em descaminho.
Folha de vento, solta da árvore,
meu corpo se perdeu dentro de mim.
Perdi o norte e o sinal
de procurar o signo de amarar.
Não posso partilhar meu rumo
na terra pisada,
onde crescem flores que não semeei.
Há sucessivas frustrações
que nenhum correr do tempo
pode, afinal, apaziguar.

De meu além não vim
e assim perdido,
perdi a voz.
Sinto-me intruso,
foragido,
proibido.
Afinal, era verdade o lado lunar
que te ocultava,
o soporífero paraíso
de um exótico comprado
em qualquer agência de viagens,
essas teias de luxúria a que chamam prazer,
as orgias dos acasos enevoados
que esmagaram gestos de pureza,
nessa rodilha decadentista de carnes flácidas
com que a loucura vai cercando o desencanto.
Quem, estando à porta do ser,
nele não quer entrar
pode não ter razões
que o façam mover.

Há páginas de dor que vamos escrevendo
para ninguém as possa um dia ler,
nem eu próprio,
páginas e páginas impublicáveis,
com que vou tentando apagar
as mágoas das noites sofridas em solidão,
sem conseguir desligar da angústia
que me agita e
não consigo verbalizar.
São páginas e páginas em que me sofro
e refreio
e que não compenso
nos fumaradas opiáceas
com que outros enevoam o mundo.

Sinto quem sofro,
mas não consigo livrar-me dos fantasmas
que dentro de mim volteiam.
Não consigo superar estes receios
que me agridem em surdina.
Me receio,
me refaço,
me retomo.
Mas não consigo vencer a futilidade
e esquecer
a força do vento
e o perfume da caruma nos pinhais.
Prefiro manter o sonho
de procurar a perfeição.

Não tenho terra, não tenho casa



Não tenho terra, não tenho casa
e apenas resta o mar que me perdeu.
Vagabundo por tua causa
em tal procura me não acho,
correndo todas as ruas do mundo.
Não tenho terra, não tenho casa
e, sem lugar, é, do próprio tempo,
que me desprendo.
Ficou por achar quem sou
e, em nome do sonho que me norteia,
foi de mim que fugi por tua causa.

Nesta dor da solidão, assim guardado em mim,
temo cruzar-me com quem sofre
o silêncio de não dizer.
E guardo quem sou, assim calado,
sem força até para dizer da revolta que me invade,
do sentido que procuro,
do tempo que não acho.
Assim fechado, em casa,
à espera de uma qualquer música
que me liberte
destas quatro paredes
de quem assim, de si, se perde,
de quem passeia sua procura
neste silêncio imenso que me invade.

Que apetecia viver e reviver,
procurar, longe daqui, em qualquer lugar,
um lugar onde que me faça regressar.
Um verso onde poisar meu verso,
a pátria prometida
que resguardo em sonho,
nas mãos fechadas da revolta,
neste sonho de procurar quem sou
pelas ruas abertas à brisa suave,
e estes fins de tarde com poentes de fogo
que vão incendiando o céu azul
que me deu quem sou.

Que aqui e agora, me vou sofrendo,
no verso que procuro neste correr livre da pena,
em minha própria procura.


Não tenho terra, não tenho casa


Hoje sou amargura, voz embargada
de quem vai sofrendo o vazio da procura.
Porque sou o mesmo, ainda que o não seja.
Porque apetecia que não apetecesse
tua procura.


Apetecia poder ser, poder viver,
poder sofrer.
Apetecia a solidão agreste
de quem ousa erguer
as mãos para uma qualquer luz
que não consigo olhar de frente.

Ter um signo e não poder cumpri-lo,
ter um sonho e não poder vivê-lo.
Sim, eu sei que sou a margem
que, em vão, se usa,
para que tudo seja gente que esqueça.
Apenas servi de trampolim, para não ser.

dezembro 18, 2008

Foi aqui que fomos nós


Foi aqui que fomos nós,
um dia,
quando o Verão nos dava
espaço de saudade
e a água, amarga de sal,
nos animava.
Quando corpos salgados,
pelas areias,
se passeavam,
e um longo pôr do sol
nos amainava
a fúria dos dias.

Foi aqui que fomos nós,
em vida.
Foi aqui, entre anchovas e coentros,
na sombra breve dos pinheiros,
na pedra negra do cais que nos deu mar,
foi aqui que sonhei
ser para sempre
quarto crescente
e um sol de fogo, a ocidente
prometendo regressar.
Foi aqui que vi nascer o dia
no alto da falésia da Arrifana,
no alto da minha vida,
quando disse não
aos dias que sofria
e, contigo, viajei comigo,
dobrando a névoa do tempo,
a raiva amarga da renúncia.

Foi aqui que, por mim dentro,
me esqueci de quem sofreu
a espera de te encontrar,
desses dias todos
de mãos por dar,
de um amor por cumprir.
Foi aqui que me esqueci
de um tempo que já não há
e que, olhando o sol de frente,
contra mim, venci
a ira dos dias
que foram fantasia.
Foi aqui que não ouvi
o silvo do farol
em aviso de naufrágio.
Foi aqui que, dentro de mim,
vivi quem na verdade sou.
E tudo quem fui
antecedeu quem sou,
como no estampido
de um sonho adolescente
nesse encontro de menino
que me deu sinal de navegar
nos mares em do meu silêncio.
Tudo quem sonho
desceu assim dentro de mim.
Foi aqui e foi assim.
Não guardarei segredo
e a todos poderei dizer
que amanhã será o sonho que sonhei
feito viagem.
Foi aqui e foi assim
e assim será para sempre
um tempo de areia e urze,
que foi assim que apeteceu que fosse.
Foi assim, na margem de quem sou,
na ponte que me levou ao sonho,
onde, além de mim,
me atravessei
Foi aqui que, contigo, vivi
pela primeira vez
quem sempre fomos.
E aqui seremos plenitude,
se vencer a força de sonharmos
e o mar nos der
a ira de chegarmos
dentro de nós, além de nós.

Foi aquém e foi além



Aqui, onde quem estou, serei.
Onde meu corpo é sinal de procura,
sinal de um mar para onde vou.
Onde o verso me dará quem sou.
Onde versos e versos me levam ao segredo.

Sim, deixa dizer em segredo deste pedaço de procura,
deste resto de música que, de mais além me dá sinal.
Deixa dizer meu sonho
e seguir o sonho de um mar por cumprir.

Porque, para os outros que me lêem,
não posso dizer tudo quem sou.
Os breves recantos onde me guardo.
Os sinais que me dão segredo.

Ter um qualquer lugar que me dê lugar

Sinto que necessito, aqui e agora,
de umas quaisquer mãos livres
que me dêem espaço
para um qualquer lugar no mapa dos sonhos.
Um qualquer signo
que me possa transportar
para novos dias,
diante de quem sou.
Dias de quem, na verdade, sou.

Ter um qualquer lugar que me dê lugar,
que não esta espera sem mãos de espera,
este desejo de ficar e de sofrer.

Olho através da janela o pequeno pinheiro,
o melro de bico amarelo, avermelhado,
as flores vermelhas da jardineira,
a água da ribeira e o céu inteiro sem uma nuvem sequer. E sabe tão bem sentir, no azul da rua, a mesma cor que tenho dentro de mim. Sabe tão bem sentir a vinda de mais um dia e apetecer vivê-lo, na paz inteira, sem que as nuvens do remorso e do pecado me toldem a memória.


Perdi o meu amor, por desejar ir além
das mãos que me prendiam,
quando, na curva de um caminho
que, afinal, já não havia,
me volvi.
Renunciámos ao azul do mar,
das águas correntes,
das sombras frescas.
Sinto que a Primavera não vai voltar,
nem depois de sofrermos a invernia.
Não posso continuar a sofrer a dor de não saber,
de todos os dias ter que conhecer
memórias de tempos que não quero conhecer.

Preso no lodo,
envolto em dor,
foi por ti que chorei em descaminho.
Folha de vento, solta da árvore,
meu corpo se perdeu dentro de mim.
Perdi o norte e o sinal
de procurar o signo de amarar.
Não posso partilhar meu rumo
na terra pisada,
onde crescem flores que não semeei.
Há sucessivas frustrações
que nenhum correr do tempo
pode, afinal, apaziguar.

De meu além não vim
e assim perdido,
perdi a voz.
Sinto-me intruso,
foragido,
proibido.
Afinal, era verdade o lado lunar
que te ocultava,
o soporífero paraíso
de um exótico comprado
em qualquer agência de viagens,
essas teias de luxúria a que chamam prazer,
as orgias dos acasos enevoados
que esmagaram gestos de pureza,
nessa rodilha decadentista de carnes flácidas
com que a loucura vai cercando o desencanto.
Quem, estando à porta do ser,
nele não quer entrar
pode não ter razões
que o façam mover.

Há páginas de dor que vamos escrevendo
para ninguém as possa um dia ler,
nem eu próprio,
páginas e páginas impublicáveis,
com que vou tentando apagar
as mágoas das noites sofridas em solidão,
sem conseguir desligar da angústia
que me agita e
não consigo verbalizar.
São páginas e páginas em que me sofro
e refreio
e que não compenso
nos fumaradas opiáceas
com que outros enevoam o mundo.

Sinto quem sofro,
mas não consigo livrar-me dos fantasmas
que dentro de mim volteiam.
Não consigo superar estes receios
que me agridem em surdina.
Me receio,
me refaço,
me retomo.
Mas não consigo vencer a futilidade
e esquecer
a força do vento
e o perfume da caruma nos pinhais.
Prefiro manter o sonho
de procurar a perfeição.

Um tempo-mar que há-de ser


Apetece sorver o tempo-mar
que há-de ser
e assim volver ao sonho,
à vertigem de um acaso procurado.
Porque, no mais fundo de quem sou,
há sempre um pedaço de mar.

Há um tempo de espera de quem sou.
Agora e aqui, diante de mim.

E vou, pelo mar sem fim,
que meus olhos perseguem.
E reparo, nas muitas palavras dispersas
que me repõem.




Há um espaço em mim
que tenho de reencontrar
e captar
para nele semear
os dias que hão-de ser.
Há um espaço de beleza por semear.
Que hoje apetecia poder seguir contigo
numa qualquer viagem de chegar
à identidade que nos deu ser.

Nosso humor merancórico...


Tudo estava enevoado pelo molha-tolos
que me dava a bruma do ensimesmamento.
E nem sequer senti o deslumbramento da foz,
perdendo-se na fundura do mar bravo.
E assim larguei os pinheirais de bruma,
só começando a sentir azul
bem perto de minha pequena pátria,
onde voltei a sorver
a força do rio que me deu pátria,
as salinas,
a mansa foz,
as cores vivas do sol na serra
que tem nome de boa viagem.


Sou tanta gente antes de mim
que, quando por mim dentro me procuro,
é em todos os outros
que me confundo.
E assim, com os outros,
em comunhão, refeito
sou bem mais do que me penso.

Dia de regresso para seguir em frente

Há coisas que apetece dizer,
mas que talvez já não saiba dizê-las
como sabia.
Coisas que talvez tenha medo de dizer,
ou que ainda não posso dizer
e que, por isso, se ficam em fluidez,
perdidas no suave travo amargo
desta breve tristeza que apetece,
quando o sol já me desperta.
Apenas quero um pedaço de tempo
em que me guarde e resguarde
do tempo que, em vão, não tenho

Sofro esta pulsão de escrever-me,
desvendando os recantos de quem sou
e que, às vezes, nem eu próprio sei.
E assim encruzilhado, por mim dentro,
vou sentido mãos calcorreando
as teclas de um piano
e que me levam além de mim.

Detesto a fadiga dos horários

Detesto a fadiga dos horários.
Como se o tempo apenas tivesse datas,
marcas
divisórias entre um antes e um depois,
como se todas as horas,
todos os dias,
todos os momentos
não fossem parcelas fungíveis
da grande corrente de vida
sem fim,
neste vaivém dos dias
sem a rotina dos horários,
sem a fadiga de quem não aceita
a dor de não achar-se.
Como se, aqui e agora, eu não fosse mais do que sou.

Aqui e agora, numa estrada deserta,

Aqui e agora, numa estrada deserta,
diante da barra do Tejo,
de olhos postos num sol que vai pondo
a Ocidente...

Haverá sempre alguém que, amanhã,
estará aqui,
no seu agora,
olhando o mistério
desta barra que foi partida
para o outro lado do mundo.
Haverá sempre navios
que partem mar dentro,
para outro lado do mundo.
Haverá sempre navios que partem daqui
para o mais além,
à procura de um novo mundo.
Não consegue viver quem não tiver
a humildade de se sonhar.
Navegar é preciso, viver não é preciso.

No alto da falésia da minha vida


Foi aqui que fomos nós,
um dia,
quando o Verão nos dava
espaço de saudade
e a água, amarga de sal,
nos animava.
Quando corpos salgados,
pelas areias,
se passeavam,
e um longo pôr do sol
nos amainava
a fúria dos dias.

Foi aqui que fomos nós,
em vida.
Foi aqui, entre anchovas e coentros,
na sombra breve dos pinheiros,
na pedra negra do cais que nos deu mar,
foi aqui que sonhei
ser para sempre
quarto crescente
e um sol de fogo, a ocidente
prometendo regressar.
Foi aqui que vi nascer o dia
no alto da falésia da Arrifana,
no alto da minha vida,
quando disse não
aos dias que sofria
e, contigo, viajei comigo,
dobrando a névoa do tempo,
a raiva amarga da renúncia.

Foi aqui que, por mim dentro,
me esqueci de quem sofreu
a espera de te encontrar,
desses dias todos
de mãos por dar,
de um amor por cumprir.
Foi aqui que me esqueci
de um tempo que já não há
e que, olhando o sol de frente,
contra mim, venci
a ira dos dias
que foram fantasia.
Foi aqui que não ouvi
o silvo do farol
em aviso de naufrágio.
Foi aqui que, dentro de mim,
vivi quem na verdade sou.
E tudo quem fui
antecedeu quem sou,
como no estampido
de um sonho adolescente
nesse encontro de menino
que me deu sinal de navegar
nos mares em do meu silêncio.
Tudo quem sonho
desceu assim dentro de mim.
Foi aqui e foi assim.
Não guardarei segredo
e a todos poderei dizer
que amanhã será o sonho que sonhei
feito viagem.
Foi aqui e foi assim
e assim será para sempre
um tempo de areia e urze,
que foi assim que apeteceu que fosse.
Foi assim, na margem de quem sou,
na ponte que me levou ao sonho,
onde, além de mim,
me atravessei
Foi aqui que, contigo, vivi
pela primeira vez
quem sempre fomos.
E aqui seremos plenitude,
se vencer a força de sonharmos
e o mar nos der
a ira de chegarmos
dentro de nós, além de nós.

As mãos acariciando o tronco dos dias...

O tempo, sempre a palavra tempo
que apetece saborear
e peregrinar,
as mãos acariciando o tronco dos dias
e os pés calcorreando a caruma dos pinhais.
E lá vou olhando, ao longe,
as nuvens que, do longo mar, se desprendem.
Sempre o tempo me dando ritmo, especialmente quando me apetece continuar aqui, mesmo que seja noutro lugar, para que as circunstâncias despertem outras faces do meu ser. Basta que a terra gire e que o sol venha alumiar certas ruas obscuras que não me deixavam peregrinar por dentro da minha própria história.

Passaram os tempos das amarguradas madrugadas
sem conseguir dormir,
desses assomos de tristeza
que provocam nos outros o sofrimento que não merecem.
Quando apetece fugir para não olhar o sol de frente,
visualizando a inteireza da nossa encruzilhada,
quando nem sequer conseguimos verbalizar a angústia,
percorrendo ruas de obscuros barulhos
assentes no lodo dos sítios
onde o sol tarda a chegar,
entre restos de barcos que apodrecem.



Apetece que estes dias não acabem
e que consiga capturar este prazer de viver feliz,
vencendo as penumbras.
Não, não me sinto um qualquer náufrago
em qualquer ilha deserta ou secreta
que a imaginação doentia pode inventar.
Prefiro a dureza desta costa ocidental e a violência luminosa
deste sol de Portugal que nunca admitiriam esses temporários embriagantes que nos entontecem. Porque há antiquíssimos sinais de um mar de há muito descoberto. Há o silêncio profundo desses segredos, ditos com palavras de todos os dias, maduramente sentidos. Há, sobretudo, a dor da procura de sentido, assente em sofrimento passado.

Novas palavras do nascer de novo

O dia que há-de ser
quando vieres para sempre
e quando, contigo, mais uma vez,
voltar quem somos,
mas para sempre,
longe do medo,
perto do mar,
à sombra da pedra,
na raiz da terra.


Sei que apenas queria o impossível
de um breve intervalo.
Que todo o tempo parasse
e que o todo nos desse
um tempo sem tempo,
num mar azul
de espuma branca.


Queria um tempo que, sem porquê, perdi
e nos perdeu,
que, na sombra do dia que tarda,
na cinza quente de um dia que tem de ser,
na tarde de um dia que será para sempre,
que tuas mãos me peçam
que minhas mãos te dêem
eternidade.

As ondas batendo breves no longo cais de pedra


E ficarão, para sempre,
as pequenas vagas batendo mornas
nos longos cais de pedra
das chegadas, sem partidas.

Ficará eterno, o prometido barco
que nos há-de levar
para o outro lado
do mar,
ficará, para sempre,
o infinito a que nos demos.

Apetecia dizer que amanhã poderemos dar tempo

Apetecia dizer que amanhã poderemos dar tempo
ao tempo do não-tempo,
para que um breve momento nos dê quem somos.
Que as minhas mãos em tuas mãos
vivam a tal viagem por cumprir.
Que as mãos nossas sejam navios ousados
que novo mar nos descubram.
Que, nossas, as mãos nos dêem
mansos sulcos ainda mais fundos,
ainda e sítios de sermos sem dizer não.
Para conjugarmos por fim o verbo mar
e dizermos sem medo
o que tememos.
Que, de mar a mar, seja possível
não mais parar de amarar.

Porque há mar demais, dentro de nós

Porque há mar demais, dentro de nós,
Amanhã, a manhã há-de chegar,
e, breve, o momento nos dará
a procura de um sempre
que sempre foi procura.
Então, nossas mãos ousadas,
mais uma vez, serão
sinais da viagem por cumprir.

E mansas, profundas,
sulcando os ermos,
virá um tempo sem tempo
de mais sermos.
E, conjugando o verbo mar,
nesse amarar,
corpo diante de corpo,
corpos em sol, corpos de sal,
teremos sítio para vencer o medo
e dizer amor e mar.

E poderei contigo, para sempre, viajar,
sem que as memórias proíbam
e os silvos sustenham
a força de chegarmos.
Assim seremos, para sempre,
em sítios que só nos sabemos,
à beira do sonho
de quem somos,
sem que o vento nos traga
o medo frio do remorso
em noites de agonia.

Porque há mar demais à nossa beira

Porque há mar demais à nossa beira.
E um novo tempo sem tempo
em nosso tempo.
Um desejo secreto de apetecer dizer
que amanhã terá de ser,
sem as fantasias dos impossíveis,
sem esses sítios sem pedra
onde nunca se pode estar.

Porque a razão nos dita desassossego

E ficarão, para sempre, as pequenas vagas
batendo mornas
nos longos cais de pedra
das chegadas, sem partidas.
Ficará eterno o prometido barco
que nos há-de levar
para o outro lado do mar.

Ficará, para sempre,
o infinito a que nos demos.

Que, nossas, as mãos nos dessem

Apetecia dizer que amanhã poderíamos dar
tempo
ao tempo do não-tempo,
nem que fosse um breve momento
que nos desse o prometido
sempre.
Que as minhas mãos
em tuas mãos
vivessem
a tal viagem por cumprir.
E nossas mãos,
navios ousados
novo mar
nos descobrissem.
Que, nossas,
as mãos nos dessem
mansos sulcos
bem mais fundos.
Para conjugarmos em fim
o verbo mar
e dizermos sem medo
o que tememos.
Que, de mar a mar, fosse possível
não mais parar de amarar.

Sempre esta procura de não achar o sonho de quem sou

Sempre esta procura de não achar o sonho de quem sou.
A tal semente que a brisa do rio me deixa
em seu vagar de esperança.
Que há dias de rio e mar
assim à minha beira.
Dias de chegar e regressar.
De tempos que me dão tempo,
estes marítimos compassos de meu caminho de cais.
Que serei sempre quem procuro e afinal não acho.
Esta solidão solidária que o infinito me deu,
esse intenso sinal do tempo
que, por mim dentro, me permite o mais além.

Agora, o prazer da sombra de um jardim
em plena cidade,
a música dos pássaros vencendo o ruído
dos carros que passam,
as conversas que se ouvem, difusas, na mesa ao lado,
os incómodos sons dos telemóveis
que interrompem a serenidade do jardim,
e a minha solidão que pensa.
Sobretudo, o prazer de recordar momentos
em que fui feliz.

E o pássaro que volta
e cujo chilreio recorto,
deste mosaico do momento.
O verde sujo visto da sombra,
o breve vento que nos refresca em dia de Verão.
Onde não interessam as conclusões que declaramos,
mas as angústias da procura que poderemos sugerir.

Comi breve, nesse requinte
de saborear sem olhar as horas,
sem ter de correr para cumprir,
pedindo um café no devagar e escrevinhando à toa
sem sequer ter que escrever.
Fecho-me à conversa impertinente
destes vizinhos de mesa, atrás de mim,
prefiro seguir a viagem
que uma ousada pomba vai fazendo
por entre as mesas da esplanada.

Em noites de silêncio e dor

São longos estes dias de espera,
esta frustração de não poder,
contigo,
peregrinar
os montes e vales que me vão cercando,
sobretudo em noites de silêncio e dor.
Que doem as coisas que não temos
e esse espaço que medimos como frustração e desafio,
enquanto silêncio a preencher.

Eis que chega o tempo de acordar,
de estar assim desperto
perante o desabrochar do dia,
com o sol rompendo por entre os montes
e o vento despertando a ramagem dos pinheiros.
Eis o longo dia que volto a querer peregrinar,
assim diante do cosmos
e podendo acariciar,
mexer, revolver, rearrumar.

Eis o corpo exposto nas tábuas do meu peito,
onde posso suspender teu corpo,
o porto de partida para a longa viagem
de uma nova criação do mundo.
Eis o tempo do voo
do pássaro azul que vou procurando,
contra os temores que me dão revolta,
contra os frios de uma noite de remorso.

Eis a luz que me traz esta janela rasgada,
diante do mar,
este canto ocidental da minha casa,
onde me guardo para viver
o prazer da escrita,
mas onde também a ventania descobre
todas as frinchas das portadas.
Eis o largo espaço
de um tempo por cumprir,
quando apetecem cordas
que sustentam o meu corpo.

Foi aquém e foi além

Há um espaço em mim que tenho de reencontrar
e captar
para nele semear
os dias que hão-de ser.
Há um espaço de beleza por semear.
Que apetece poder seguir contigo
numa qualquer viagem
de chegar
à identidade que nos deu ser.

Nesta luz a mais que me define

Dia de sol a rodos, nesta costa ocidental,
onde apetece saudar
a braveza do mar,
sentindo a luz solar, em sua carícia de força.
Neste dia de cristalina primavera,
nesta luz a mais que me define,
nesta viagem de sempre,
em que refaço as longas raízes da esperança,
a que, infelizmente, continua a faltar terra e muro.


E foram quase dois dias,
assim alheado de certo mundo.
Porque preferi sentir as toadas de uma infância de mar e sol,
recordar os toldos postos em fila,
o cheiro a peixe sêco,
as ruas de vento
e a areia presa no corpo.
Senti o batel que os mansos bois tiravam do mar,
praia acima e até voltei a acariciar
as velhas pedras do forte.

Detesto a fadiga dos horários

Detesto a fadiga dos horários.
Como se o tempo apenas tivesse datas,
marcas
divisórias entre um antes e um depois,
como se todas as horas,
todos os dias,
todos os momentos
não fossem parcelas fungíveis
da grande corrente de vida
sem fim,
neste vaivém dos dias
sem a rotina dos horários,
sem a fadiga de quem não aceita
a dor de não achar-se.
Como se, aqui e agora, eu não fosse mais do que sou.

Dia de regresso para seguir em frente

Há coisas que apetece dizer,
mas que talvez já não saiba dizê-las
como sabia.
Coisas que talvez tenha medo de dizer,
ou que ainda não posso dizer
e que, por isso, se ficam em fluidez,
perdidas no suave travo amargo
desta breve tristeza que apetece,
quando o sol já me desperta.
Apenas quero um pedaço de tempo
em que me guarde e resguarde
do tempo que, em vão, não tenho

Sofro esta pulsão de escrever-me,
desvendando os recantos de quem sou
e que, às vezes, nem eu próprio sei.
E assim encruzilhado, por mim dentro,
vou sentido mãos calcorreando
as teclas de um piano
e que me levam além de mim.

Nosso humor merancórico...

Tudo estava enevoado pelo molha-tolos
que me dava a bruma do ensimesmamento.
E nem sequer senti o deslumbramento da foz,
perdendo-se na fundura do mar bravo.
E assim larguei os pinheirais de bruma,
só começando a sentir azul
bem perto de minha pequena pátria,
onde voltei a sorver
a força do rio que me deu pátria,
as salinas,
a mansa foz,
as cores vivas do sol na serra
que tem nome de boa viagem.

Um tempo-mar que há-de ser

Apetece sorver o tempo-mar
que há-de ser
e assim volver ao sonho,
à vertigem de um acaso procurado.
Porque, no mais fundo de quem sou,
há sempre um pedaço de mar.

Há um tempo de espera de quem sou.
Agora e aqui, diante de mim.

E vou, pelo mar sem fim,
que meus olhos perseguem.
E reparo, nas muitas palavras dispersas
que me repõem.

Sou tanta gente antes de mim
que, quando por mim dentro me procuro,
é em todos os outros
que me confundo.
E assim, com os outros,
em comunhão, refeito
sou bem mais do que me penso.

Foi aquém e foi além


Aqui, onde quem estou, serei.
Onde meu corpo é sinal de procura,
sinal de um mar para onde vou.
Onde o verso me dará quem sou.
Onde versos e versos me levam ao segredo.

Sim, deixa dizer em segredo deste pedaço de procura,
deste resto de música que, de mais além me dá sinal.
Deixa dizer meu sonho
e seguir o sonho de um mar por cumprir.

Porque, para os outros que me lêem,
não posso dizer tudo quem sou.
Os breves recantos onde me guardo.
Os sinais que me dão segredo.


Há um espaço em mim
que tenho de reencontrar
e captar
para nele semear
os dias que hão-de ser.
Há um espaço de beleza por semear.
Que hoje apetecia poder seguir contigo
numa qualquer viagem de chegar
à identidade que nos deu ser.

Ter um qualquer lugar que me dê lugar

Sinto que necessito, aqui e agora,
de umas quaisquer mãos livres
que me dêem espaço
para um qualquer lugar no mapa dos sonhos.
Um qualquer signo
que me possa transportar
para novos dias,
diante de quem sou.
Dias de quem, na verdade, sou.

Ter um qualquer lugar que me dê lugar,
que não esta espera sem mãos de espera,
este desejo de ficar e de sofrer.

Olho através da janela o pequeno pinheiro,
o melro de bico amarelo, avermelhado,
as flores vermelhas da jardineira,
a água da ribeira e o céu inteiro sem uma nuvem sequer. E sabe tão bem sentir, no azul da rua, a mesma cor que tenho dentro de mim. Sabe tão bem sentir a vinda de mais um dia e apetecer vivê-lo, na paz inteira, sem que as nuvens do remorso e do pecado me toldem a memória.
Perdi o meu amor, por desejar ir além
das mãos que me prendiam,
quando, na curva de um caminho
que, afinal, já não havia,
me volvi.
Renunciámos ao azul do mar,
das águas correntes,
das sombras frescas.
Sinto que a Primavera não vai voltar,
nem depois de sofrermos a invernia.
Não posso continuar a sofrer a dor de não saber,
de todos os dias ter que conhecer
memórias de tempos que não quero conhecer.

Preso no lodo,
envolto em dor,
foi por ti que chorei em descaminho.
Folha de vento, solta da árvore,
meu corpo se perdeu dentro de mim.
Perdi o norte e o sinal
de procurar o signo de amarar.
Não posso partilhar meu rumo
na terra pisada,
onde crescem flores que não semeei.
Há sucessivas frustrações
que nenhum correr do tempo
pode, afinal, apaziguar.

De meu além não vim
e assim perdido,
perdi a voz.
Sinto-me intruso,
foragido,
proibido.
Afinal, era verdade o lado lunar
que te ocultava,
o soporífero paraíso
de um exótico comprado
em qualquer agência de viagens,
essas teias de luxúria a que chamam prazer,
as orgias dos acasos enevoados
que esmagaram gestos de pureza,
nessa rodilha decadentista de carnes flácidas
com que a loucura vai cercando o desencanto.
Quem, estando à porta do ser,
nele não quer entrar
pode não ter razões
que o façam mover.

Há páginas de dor que vamos escrevendo
para ninguém as possa um dia ler,
nem eu próprio,
páginas e páginas impublicáveis,
com que vou tentando apagar
as mágoas das noites sofridas em solidão,
sem conseguir desligar da angústia
que me agita e
não consigo verbalizar.
São páginas e páginas em que me sofro
e refreio
e que não compenso
nos fumaradas opiáceas
com que outros enevoam o mundo.

Sinto quem sofro,
mas não consigo livrar-me dos fantasmas
que dentro de mim volteiam.
Não consigo superar estes receios
que me agridem em surdina.
Me receio,
me refaço,
me retomo.
Mas não consigo vencer a futilidade
e esquecer
a força do vento
e o perfume da caruma nos pinhais.
Prefiro manter o sonho
de procurar a perfeição.

Não tenho terra, não tenho casa

Não tenho terra, não tenho casa
e apenas resta o mar que me perdeu.
Vagabundo por tua causa
em tal procura me não acho,
correndo todas as ruas do mundo.
Não tenho terra, não tenho casa
e, sem lugar, é, do próprio tempo,
que me desprendo.
Ficou por achar quem sou
e, em nome do sonho que me norteia,
foi de mim que fugi por tua causa.

Que apetecia viver e reviver,
procurar, longe daqui, em qualquer lugar,
um lugar onde que me faça regressar.
Um verso onde poisar meu verso,
a pátria prometida
que resguardo em sonho,
nas mãos fechadas da revolta,
neste sonho de procurar quem sou
pelas ruas abertas à brisa suave,
e estes fins de tarde com poentes de fogo
que vão incendiando o céu azul
que me deu quem sou.

Que aqui e agora, me vou sofrendo,
no verso que procuro neste correr livre da pena,
em minha própria procura.

Da procura de um amor feliz

Sempre a espera que antecede
o momento da procura,
um rio, o vento,
o barco que passa,
o sítio mais estreito
que nos dá passagem.
Uma barca que nos leve além,
para ficarmos bem mais perto
desse pedaço de sonho
que se guarda em mim.
No apetecer de um tempo descoberto,
na sagrada procura de um sinal
que me dê sonho,
na espera sentida de um tempo que me dê alento.
Sou quem sonho, as mãos sustenho
sem palavras que descrevam o momento.
O breve sinal que me deu alma.
E as mãos contenho, devagar.
Que aqui quem sonho me deteve
à beira de um tempo que não foi.
Ouve, deixa que te diga
o que, no fundo me apetecia,

nesta ternura de ainda termos cumplicidade.
Deixa que te diga que ainda vale a pena
o segredo que nos arrasta livremente
pelos breves meandros da felicidade.
E apetecia escrever-te sem peias,
deixar aqui o nome que soletro, mas não registo,
com medo que vasculhem estes papéis.
Quanto apetecia dizer-te profundamente,
que é por tua causa que aqui me vou escrevendo,
para que um dia, quando voltarmos a quem na verdade somos,
nus e secretos,
num qualquer lugar que nos dê futuro,
teus olhos possam estas linhas percorrer.
Quanto apetecia que estas palavras pudessem
despertar quem sou,
que, mesmo depois de morto,
nestas palavras eu possa, através de alguém
que isto mesmo sinta, me eternizar.
Que, com alguém, sentindo o meu sentir de agora,
possa voltar, um dia,
a eternidade que, humanamente senti,
na brevidade desta vida.
Que tua cumplicidade sentida
possa despertar-me das brumas da memória,
em nome do amor.
Aqui me espero à tua espera.
Nesta casa onde apetecia que viesses
para desbravarmos a noite.
Para, diante da lua,
poder seguir
a cartografia do teu corpo,
decifrando todos os sinais que me dão rota.
É a noite que vai seguindo seus passos,
nesses longos caminhos que apetece peregrinar,
nestas viagens de me olhar por dentro,
de me olhar para dentro.
É o tempo.
O muito tempo que me apetece,
para que o tempo não finde
e seus sinais me não dêem a longa esperança da viagem.
E apetecia seguir contigo,
ser contigo,
para sempre viver contigo.
Como dói saber que o tempo me consome
e nos consome

Chegou, de repente, um pedaço de céu azul

Chegou, de repente, um pedaço de céu azul.
E o meu irmão pardal escapou-se
largando o espaço
onde minhas mãos o poderiam acariciar.
Apeteceu-lhe também não ter gaiola,
horários, calendários e agendas
nesse ter que fazer, para se fingir viver,
entre cartas de bancos, declarações de impostos
e outras algemas de uma cidadania
de trabalhador por conta de outrem,
beneficiário e contribuinte
por causa da assistência na doença
e subsídio para o funeral
deste belo Estado de Bem Estar.

E lá vem o sol, antes de ser poente.
E toda a barra fica plena deste azul de Lisboa,
desta luz a mais que nos dá desejo
de viver intensamente,
apetecendo sentir a música que me chega
destes sinais de primavera.
É a luz que me alumia e me dá sonho.
E força para vencer as nuvens e penumbras
que me toldam o silêncio.

E fui ao fundo das águas.
E, livremente preso,
me veio o doce prazer do movimento,
de poder cumprir o desafio de atravessar o rio
que nos separa.
Navegar para a outra banda,
derrubando a margem,
nesta procura por onde me vou buscando,
neste prazer de viajar em mim,
dentro de mim,
dando o meu corpo ao movimento,
em busca de um sonho que não acho.
E assim disperso pelos pedaços de vida
que, apesar de vivida, continuo a procurar,
fui peregrinando rumo à linha que limita
a minha vida,
esse risco de bruma que vai além
do que sinto e penso.

Que apetecia viver e reviver,
procurar longe daqui,
um qualquer lugar que apenas fosse meu,
um lugar onde pudesse regressar
a quem na verdade sou.
O lugar onde poisar meu verso,
a palavra prometida
que resguardo em sonho,
mesmo quando penso deter
as mãos fechadas que me dão revolta.
E sempre este sonho de procurar quem somos,
nas ruas abertas à brisa suave.

Navegar para a outra banda, derrubando a margem

Apetecia poder sair daqui, permanecendo aqui.
Olhar daqui, por dentro de mim,
sulcando quem poderei ser,
neste vaivém do sonho
que tenho
e não tenho.
Apetecia continuar a sentir o silêncio da beira rio,
viver o ritmo das águas vão batendo
nas pedras do cais,
ficar assim, nesta margem de mim mesmo,
onde posso passar sempre à outra banda.

Apetecia partir dentro de mim
para o meu próprio lugar achar,
agora que me vai doendo a nostalgia do exilado,
o estar aqui sem ser daqui,
e sem sequer me apetecer fingir que sou daqui.
Que meu lugar é ter lugar longe daqui,
em sítio de sereno viajar,
peregrinando pinheirais de bruma
e praias de areias longas.

Neste vaivém, onde estou quem não sou,
É em saudades que me volvo
e me converto.
Sei que sou quem não estou
e que apetecia largar de mim
a amargura de procurar viver
meu signo.
Porque tenho a noção exacta dos meus próprios limites,
da minha falta de força para suster forças
bem mais fortes do que os meus braços
e que, por isso, se quebra o encanto
daquela luz que brilhou em mim,
neste dias de sonho sofrido.

Se eu pudesse voar sobre quem somos

Se eu pudesse voar sobre quem somos,
vencendo o medo que tivemos dentro de nós.
Se pudesse chegar o tempo de dizermos mais,
o que um ao outro jamais dissemos.
Nas mãos a que nos demos e onde tecemos,
dedos cruzados, o calor que há-de vencer
o frio da espera.
A noite não terá fim nesse cais suspenso sobre o lodo
e em teu corpo deporei a flor do tempo que virá.


Que só contigo eu sei dizer amor,
olhos nos olhos, viver amor,
corpos nos corpos,
sem ter que me esconder
de quem na verdade sou.
Sim, eu sei o que só nós dois sabemos
e que um dia será para sempre,
porque o tempo nos deu espera,
porque a espera nos deu signo,
para que o novo tempo nos traga
a força de quem somos.

O mistério de, contigo, ser mais eu


Apetecia ser contigo,
ser assim bem mais do que eu,
ser contigo,
ser o nós,
e ser por nós, à tua beira.
Ser contigo para ser mais eu,
e sermos, sem sinais de angústia,
nem restos empedernidos da invernia.
Apetecia, contigo,
olhar de frente
quem, na verdade, somos,
sem a carga dos versos por cumprir.

Que o vento me traga
quem na verdade sou.
Os sinais do sítio para onde vou.
As vagas de um mar por descobrir.
Sinais de silêncio,
restos de vento.
Que versos, dispersos, alumiem
quem na verdade sou.

Apetecia viajar à beira de quem fomos,
de quem somos,
perto do rio
que em seu vaivém
nos deu corrente.
Ter suave vertigem do amanhã,
brasa de um fogo por cumprir,
risco de um além
que talvez um dia possa ser,
nesse tempo por cumprir.




Apetecia ser contigo,
assim à tua beira,
sem sinais de angústia,
nem restos da empedernida invernia,
para sermos mais do que nós.
Apetecia, contigo, olhar de frente
quem, na verdade, somos.

Para que o vento nos traga
sinais do sítio para onde vamos.
Em versos, dispersos, por cumprir,
que nos dêem as vagas de um mar por descobrir.

Apetecia viajar à beira de quem fomos,
perto do rio que em seu vaivém nos deu corrente.
Para voltarmos a ser
a suave vertigem do amanhã,
a brasa de um fogo que nos dê
o dia que há-de ser.

Foram lábios feitos navios

Sei que não dissemos a palavra amor,
mas também sei
que foi amar o que nos aconteceu.
Como aquele abanar do vento,
feito estampido,
que venceu os tímpanos do tempo.
Sei que só nós sabemos como foi
e que o segredo de nada dizermos,
tanta coisa nos disse,
nesses silêncios da noite.
E sei também que apetecia poder voltar
a ser essa breve viagem de mãos dadas,
de corpos dados,
quando dois seres que nunca se repetem
viveram um acontecer
que nunca mais será como foi
dessa primeira vez.


Houve um menino homem, em sua procura de viver,
farto de sustentar os pesos da angústia
que, em teu corpo de mulher menina,
procurou que acontecessem frutos, flores,
sombras nocturnas de primavera,
uma cama feita caruma seca de pinhal
e o tecto pleno de estrelas
num quarto aberto ao sinal do horizonte.

Apetecia o verbo amar no plural

Apetecia, aqui e agora,
Escrever, escrever-te
longa carta de amar-te,
assim letra a letra, sobre o papel,
com a força antiga e perfumada
de uma esperança viva, rediviva.
Apetecia não temer
dar nome ao proibido,
dizendo que são breves
as nuvens que nos toldam o sonho.
Apetecia ter a força inteira
de, contigo, reviver o mar sem fim.

Numa rua qualquer desta cidade antiga

Numa rua qualquer desta cidade antiga,
com o sol doirando a sombra dos plátanos
e reflectindo-se suavemente
nas vidraças da casa em frente,
é nele que vou buscar a força que preciso
para reflectir por escrito
alguns pedaços de quem sou,
aqui sentado neste escrever-me,
rescrever-me e repensar-me,
sem a angústia típica da frustração.

Que ontem, salgadamente, voltei a ser gaivota
peregrina
que se assenhoreia de um qualquer ilhéu
abandonado,
onde, de velas pandas, me naveguei,
sustendo as cordas que me livraram de sofrer
um golpe da retranca.
Porque fui de mar em mar, dentro de mim,
conseguindo olhar de frente
as sombras da memória proibida,
lá passei para a outra margem, mas sem sair de mim.
Que apeteceu, à noite, sorver o frio da maresia,
quando a viagem me fez regresso ao lar.

E quem sou pôde sorver as vagas do que há-de ser.
E até conseguiu contar e recontar histórias da infância,
desde os professores primários todos
que me deram a cultura que ainda hoje tenho,
aos padres de Santa Justa, a minha igreja,
que não deixei de ter,
desde o padre Paulo que jogava bem à bola,
ao padre Hilário que era italiano e grande.

E me vieram sabores de pedra e talha dourada,
galhetas com vinho de missa
e o cheiro queimado do turíbulo
e o som da missa em latim
e o pequeno-almoço em casa dos padres,
com grandes canecas de café com leite
e torradas com pão de mistura,
que custava dezassete tostões.
Como se o tempo fosse afinal
uma permanência que, passando, nos relembra,
assim ficando vivo no fundo da memória.

Sabe tão bem contar-te e recordar-me,
das histórias de uma infância em que fui feliz
e me fez menino para toda a vida.
Mais os passeios que dava com meu pai,
para vermos futebol no campo da Arregaça
e nadarmos no Choupal.
Ou das conversas que tinha ao borralho da minha avó.
Ou dos brinquedos que eram rolos de madeira
dos velhos mata-borrões.
Ou as muitas tábuas e serradura
que sobravam da oficina do meu avô,
com o Ezequiel, sempre emborrachado,
mas bom filho de sua mãe,
ao Serafim, com tarocas de madeira e coiro,
bem circunspecto e cumpridor,
que tinha de educar a filha.
E na memória cabem as boas lembranças
das casas da minha aldeia,
quando não havia frigoríficos nem fogões a gás,
mas mosqueiros, salgas, grelhas e fogões a lenha,
que tinham daquelas batatas fritas em azeite,
cujo sabor nunca mais voltou.

Nas leiras abertas pelos sulcos da procura

Há pedaços de quem sou,
nas leiras abertas pelos sulcos da procura.
Cheguei e logo fiz a pedestre peregrinação pelas minhas recordações açorianas. A velha pensão onde tive a ilusão de um caminho que nunca cheguei a percorrer,
a euforia do porto,
a placidez do mar em volta
e a ilha que conheço,
profunda,
enquanto me foi chegando o micaelense
das conversas desta gente antiga.
E lá vou olhando ao longe
o que então procurei em sonho.
E lá vou sentindo
o vazio de já não poder chegar.

Não dizer nada,
deixar que o tempo sossegue
a inquietude,
que a bruma se desfaça à luz do sol,
que o sonho reverdeça os ramos decepados,
que um tronco em flor nos dê alento.
Pode haver tanta vida à nossa beira,
tantos dias de beleza,
de mãos dadas.
Pode haver um tempo de pureza, um rio de fogo galgando as águas e uma casa de silêncios para ocupar. Pode haver quem somos, pode haver mar, à beira da lava negra e da pedra que esmaga o grão. Mesmo aqui, onde as nuvens, a terra e o mar se confundem, no branco cinzento do mau tempo, entre gaivotas, barcos e telas, neste leve chumbo de fundo azul.

Sei que nunca irei por aí


Eu, pelo menos, sem saber tudo o que quero,
sei perfeitamente o que não quero
e sei que nunca irei por aí,
pisando terrenos armadilhados pelas minas da subserviência,
por todas essas procuras de uma qualquer prebenda
que nos seja dada pela cunha
ou pelas habituais manigâncias politiqueiras
ou eclesiásticas,
dessas alfurjas, lojecas e pequenas cortes
de um mundo que já não há.
Não queiras servir ilusórios bobos
de reizinhos já sem reino.
Que tenhas as mãos livres
e que escrevas o que pensas
na altura certa,
para poderes seguir livre
o teu próprio sonho.
Vale mais que olhes o sol de frente,
mesmo que morras em combate
ou que venhas a ser condenado por fuzilamento de ódios.

Deixa algumas sementes de beleza
e muito amor por cumprir.
Que, de ti, ninguém possa dizer, um dia,
que se vendeu pela posta ou pela comenda.
Sê livre!
Que sejas sempre um homem livre,
desses que cumprem o dever de serem sempre
bons filhos de seus pais honrados.
Não temas alinhar com a contra-corrente
e até com o contra-poder.
Tem a coragem de seres minoria,
não tenhas medo de apostar
naquela conduta que não está dependente do aleatório
de uma escolha arbitral ou de um resultado eleitoral.
Pode não ter razão quem vence.
Pode ter razão quem perde.
Há homens de sucesso que não sabem
onde fica o seu próprio norte.

Todas as semanas o carteiro nos trazia

Todas as semanas o carteiro nos trazia
carta da tia,
falando de uma cidade onde todos eram senhores:
tinham automóvel, vivendas,
passeavam na África do Sul
e iam à praia quando nós tínhamos Inverno.

Queridos pais, irmãos e demais família,
estou a construir uma casa nova
e dentro mando uma cautela premiada
para a mãe comer melhor.

Chegou a carta de papel tão leve,
bordada a verde e vermelho,
por avião, par avion, by air mail:
A Lena já sabe inglês e a Isabel comprou uma motoreta.

O Império morreu no meu quintal

As Áfricas deram-lhe a viuvez,
o paludismo
e cinco filhos.
Porque marido, todo janota,
por lá ficou,
desfeito em pó,
e ela voltou tão pobre
quanto partira.

Oh menino, aquilo era pior que a nossa terra
ruas de terra batida
e os pretos todos à nossa beira.
Sobretudo a nossa bandeira.

E foi num dia de começo do Verão do ano de 1974
que, com a senhora Maria, minha vizinha,
depois do discurso presidencial do abandono,
que os dois, em silêncio.
decidimos arrear
o sonho daquela bandeira azul e branca,
que, num mastro de cana, eu erguera
no quintal.

O Chico Pulga das bicicletas

O Chico Pulga já não arranja bicicletas, motorizadas,
furos, correntes ou guiadores.
Agora já não há ninguém que me dê arcos
esses aros de bicicleta
com que viajámos em fantasia.

O filho do Chico, Pulga também,
agora vende motores de rega,
pequenos tractores,
motocultivadores.

Agora já todos têm retrete, fogão a gás,
rádios de pilhas e televisão.
Já todos temos democracia, já todos somos da CEE.

A ti Paivita que gostava de cachaça e de bailar

Sobretudo, a ti Paivita.
Gostava de cachaça e de bailar
e no fim das vindimas ou da azeitona
era vê-la cantar a cana verde:
Oh cavalheiro! Oh! Oh!
Morreu-lhe o homem quando ainda era nova
e, com dois filhos nos braços,
a jovem viúva guardava a honradez
trabalhando em todas as terras do lugar.
Só o bagaço a distraía,
a quente cachaça que lhe dava companhia.
Mas os fantasmas da trovoada eram os deuses ralhando,
todos os santos do céu à bofetada.
Oh cavalheiro! Oh! Oh!
Paivita lhe chamavam, tem oitenta ou noventa,
já ninguém sabe,
nem ela própria se sabe,
mas todos os dias passa no Largo da Praça,
a caminho da fonte.
Com um cantarinho de lata,
vai velhinha e não segura.

O Fernando Padeiro

O Fernando Padeiro, pela noite vai amassando
a farinha, a água quente, o fermento,
o fogo, o forno, o tijolo, a lenha, o pão,
o tabuleiro, a porta de ferro
e o pão quentinho e loiro
que a pá vai trazendo
e sempre o fato branco
e a poeira da farinha.
O pão principal é o papo seco,
O pão de cruzado, também dito pão de bico,
que custava quatro tostões,
por causa do regime do pão político.
Mas há também pão de meio quilo,
feito só de centeio,
broa de vez em quando
e sobretudo as escarapiadas de encomenda,
esse bolos de canela e açúcar amarelo
que ainda hoje me fazem vir água na boca.

O Doutor Videira

O dr. Videira era bacharel em leis, não praticante,
e até jogava bem ao fito.
Passava os dias postado nas grades da porta
a saudar quem passava
e só lhe chamavam doutor por causa disso.

Era dono de vinhas e pinhais
e foi o primeiro a comprar tractor.
Tinha direito a cadeira na capelinha do Senhor Morto,
mas nunca foi deputado nem presidente da Junta.
O Videira não morreu de velho,
morreu de tédio,
por tanto jogar às damas com o Dias do lagar
no café do Zé Maria.

Ninguém chorou por ele quando morreu.
Teve, contudo, funeral de arromba,
com um acompanhamento ia do Largo da Praça
até à Fonte do Cabo,
sinal de que afinal era boa pessoa.

Os irmãos do Santíssimo iam todos de opa vermelha
e depois do enterro também todos beberam in memoriam
nas tabernas do Larau e do Cardoso:
Um tinto pela alma do senhor doutor, do senhor doutor Videira.

Outro que morreu foi o Zé Moita

Outro que morreu foi o Zé Moita,
dos caixões, das confecções,
das grandes negociatas dos tempos da guerra,
que tinha uma carrinha preta
e a única casa de habitação da terra
que tinha papel na parede.
Morreram todos os homens do largo
que me deram educação
E os que ainda estão vivos
já não são quem eram.
Agora, a Ti Pardala
passa os dias sentada ao sol
e para andar tem de usar bengala.

Eu continuo a ser o sonho de minha avó Belita

Eu continuo a ser o sonho de minha avó Belita,
a loucura merancórica de meu avô Hirácio,
os poemas de minha avó Maria da Assunção,
ou os delírios de meu avô Lino.
E sempre, sempre, dentro de mim,
o desejo de partir, de aventura,
de poder quebrar as amarras que me ligam
à terra-mãe.

Agora, poucos sabem dos trilhos

Agora, poucos sabem dos trilhos
que, todos os dias, nos levavam
às terras das Rodas ou do Cimo do Olival,
nesses carreiros feitos com pés descalços,
onde conhecíamos as árvores, quase pelo nome,
e sabíamos das curvas
da ribeira e dos silvados.
Quando minha avó me levava às cavalitas,
tirando as sandálias de levar à cidade.

Tanta gente morreu na minha terra

Tocam os sinos na igreja...
É morte? É fogo? É missa?
Ou são apenas as horas que soam
no relógio da torre.
Tocam os sinos na igreja...
finos sons dos sinos grossos
sons de bronze
e o Mário puxando a corda
e as pessoas todas
em quase toda a freguesia
tirando a boina da cabeça
e rezando uma Avé Maria.

Sou onda, maré

Sou onda, maré,
rouco som das areias,
silêncio que semeia quem mais sou,
apetecendo sentir o sol, o sal, o sonho,
mesmo quando não apetece olhar em mim
quem na verdade sou,
porque uma parcela de mim me prende
em medos
e remorsos pelo que não fiz.

Importa viajar sem a ligeireza do turista

Importa viajar sem a ligeireza do turista.
Daquele que tudo pensa captar
porque apenas quer viajar para fazer suas as prévias sensações
já registadas por escrevinhadores de viagens.
E apetece ser parcela de outra viagem
que seja parte de uma viagem,
onde apeteça cumprir livremente o meu destino.
Para que o tempo possa circular em mim
e fazer-me nómada,
continuando na descoberta
do sentido íntimo dos lugares.
O que talvez seja não ter mesmo nenhum lugar.

Porque quando a viagem nos faz peregrinos,
vagabundos
que são romeiros de um sentido para o mundo,
cada um dos nossos passos é como se fosse uma conversão.
E todos os que têm a força para cumprir sua missão
não podem mesmo ter um qualquer lugar que os limite.
São de todo o mundo.
E apenas o tempo os vai cansando,
olhando o fim como o momento em que o corpo
já não pode ter mudança, sem merecer estar vivo.

E assim me sonho, quando vou escrevendo,
de um jacto, sem saber o que comanda a minha mão,
neste pontuar linhas sobre o papel,
procurando desafiar o sem espaço do mistério.
O tempo da descoberta nunca nos custa.
Mesmo num sítio desconhecido, fazemos sempre bolhas nos pés, no primeiro dia da estadia, nessa corrida para vencer o desconhecido, percorrendo, em círculos concêntricos, o espaço que tem por núcleo o ponto de encontro onde brevemente estacionamos e pensamos nosso.

Os minutos demoram e doem
quando se espera uma partida,
marcada pelo prazer da viagem.
Para que a espera passe depressa
e se volva em esperança,
mergulhando na noite à procura de Sul.
Quando apetece a viagem de, contigo, viajar,
de, contigo, despojar meu ser
dos restos de quem não sou,
de, contigo, viver e reviver.

E noite dentro, a viagem se desdobra
por mim dentro.
Leio.
Tento esquecer.
E ingresso, de vez em quando,
no tempo que vou esquecendo.
Regresso.
E, nesse poiso de sustento, imerso,
na imanência que é transcendência,
no devagar regresso a quem na verdade sou,
é no profundo silêncio que me durmo.
E sonho.

Nesta rapidez da viagem

Nesta rapidez da viagem,
a saudade de outras viagens com demora.
Que cansam jornadas longas demais
para tão curto tempo.
E apetecem viagens que sejam devagar
assim, passo a passo, neste deslizar
dos dias que vão absorvendo a mudança
do corpo,
a adaptação da alma.
Que correr é desprezar o espaço
e não permitir a procura do que nos falta
e para onde vamos.
Correr assim é não saber mudar.
É sermos sempre os mesmos em qualquer lugar.

Às vezes, não apetece até ler coisas difíceis

Às vezes, não apetece até ler coisas difíceis,
da dogmática de manual.
Apetece procurar o absoluto
no doce devagar do sentimento,
sem a dor de me fechar germanicamente
nas brumas e névoas da abstracção
e da engenharia do rigor epistemológico.

Tudo o que seja perturbar a falsa ordem instalada me fascina,
dado que estou farto das habilidades políticas
a que dão o nome de reformas.
E porque o desejo de certo centro, mole e difuso,
ao matar qualquer espécie de palavra mobilizadora,
é completamente totalitário,
dado que silencia o pensamento.
Sobretudo quando invocado pelo aparelhismo
desse lui que continua a dizer
que l'État c'est moi
e que nós somos o resto provinciano a educar...

Humano, demasiado humano

Humano, demasiado humano,
assento meus pés nus no lodo
e nas vísceras
do quotidiano pecado,
pleno de tentações e pulsões
que me varam e me penetram.
Mas também não deixo de procurar
olhar as estrelas, as noites de luar
ou de, em pleno dia,
ousar sentir de frente a violência solar.

Humano, demasiado humano,
me sinto apenas mais um pedaço
da minha própria história,
tanto da pessoal como da colectiva,
ambas imaginadas pela experiência.


É por isso que, às vezes, no silêncio da madrugada,
me chegam súbitos sinais de vida
e gritos por dar,
talvez por causa do meu quotidiano treino
no exercício da palavra como missão,
nisso a que chamam poesia,
que é pensar a palavra viva,
para viver meu pensamento
e sentir o que vou pensando.

Uma nostálgica identidade rural

Sou um puro e duro neto de campónios
que, na cidade educado e vivido,
prefere acreditar que ainda pode ser rural,
dado que lhe foi dado aprender
o sentido das árvores,
o correr das ribeiras,
a breve leveza dos pássaros
e a fragilidade das flores silvestres.
Tenho também a desarmonia
breve das colinas,
o agreste das brisas
e a variedade de um valado verdejante,
onde a suavidade aparente
daquilo a que, à distância, chamam paisagem,
esconde pedregulhos,
e silvados
e a intensa vida microscópica
de biológicos e minúsculos seres.
Sobretudo das formigas e das lontras
que, dia a dia, escavam e levam
pedaços de húmus
e restos de bichos e plantas.

Por trás desta máscara, feita olhos de menino,
mãos de escrever
e adornados cabelos e barbas,
esconde-se um ser feito revolta,
ainda em pleno
na sua fúria de viver,
que tem as mãos calejadas pelas cordas
que sustiveram seu navio,
com unhas enegrecidas
pela terra que semeou,
para moldar em barro
a sua própria estátua de sonho.

Não tenho a vaga fé dos nostálgicos
que procuram o regresso da magia,
nem a messiânica, ou angélica, crendice
e ânsia por cumprir
dos que esperam um qualquer encontro,
de um qualquer grau, iniciático ou profano,
com a aparição do transcendente.

E todos somos passagem

E todos somos passagem
para a necessária viagem que devemos ser,
abertos para todo o mundo.
A bruma, o som do mar distante
e a raiz profunda do vento
que desperta.

Os muitos papéis em que me perco

Tantos são os papéis em que me perco,
tantas as palavras que me prendem!
Tantos os restos do que pensei ser!
Quando apetece ficar para sempre
nessa sombra de apetecer olhar
uma qualquer nesga de céu.
E desse lugar não quero regressar.
Tenho de ficar.

Olho ao longe quem sou

Olho ao longe quem sou
e voltando ao signo que me deu distância,
estendo os braços de um sublime que se vai cumprindo.
Volto a ser quem sempre fui,
pedaço de mar por descobrir,
longo silêncio crescendo nas palavras que me escrevem,
neste vazio de um infinito
em que me perco.

Uma hora de caminhada pelas ruas planas deste lugar
com mar ao fundo
e o sol nascendo,
enquanto a passarada vai acordando as ruas vazias.
E respiro fundo diante da beleza da manhã
e a força deste silêncio.
Caminhando, sem dizer nada,
assim me vou escrevendo,
mesmo antes de sentir a liberdade da caneta,
diante do café da manhã.
Porque tempo não está para filosofices ou politiquices,
mas para sentir os pormenores da paisagem,
apenas apetece continuar feliz
e poder olhar os outros, olhos nos olhos,
sem o calculismo dos que se fingem parecenças.
Sinto saudade de mar, das pequenas ondas do bem tempo.
Da limpeza da areia.
Dos longos passeios na maré baixa,
falésia a falésia, assim diante de quem sou.

Um tempo de sofrer sem navegar

Há um tempo de sofrer sem navegar
e sentado na pedra, cercado de mar,
sei que dói quem sou, dentro de mim,
resto de um sonho por cumprir,
espaço de um mar por descobrir,
sinal da viagem de quem sou,
sem asas que esvoacem em busca do sonho.
Há um sítio onde posso semear quem sou,
um sítio de ser livre, de ser sonho,
de ser viagem por cumprir,
nesse tempo todo que me dê tempo.
Nem que seja, obreve espaço de passeio,
em noite de luar, sem vento.
Na pátria prometida que tenho dentro de mim.
E apetece largar de mim a pedra pesada
que me vai doendo,
nesta dor de não doer o que me faz doer,
quando apetecia dizer o que nem sequer sei
que tenho para dizer.
Sei que amanhã não terei sítio onde ficar,
sítio onde guardar quem sonho,
sítio de ser livre.

Que estes dias não acabem

Apetece que estes dias não acabem
para que possa continuar a capturar
este prazer de viver feliz,
vencendo as dolorosas penumbras
de um passado onde me perdi.
Não, não me sinto um qualquer náufrago
numa ilha secreta que a imaginação doentia possa inventar.
Prefiro a dureza desta costa ocidental
e a violência luminosa deste sol de Portugal.
Porque há antiquíssimos sinais
de um mar de há muito descoberto.
Há, sobretudo, a dor de procurar
o meu sentido,
assente em sofrimento passado
e o silêncio profundo desses segredos,
ditos com palavras de todos os dias,
maduramente revividos.
Ainda há tempo para dar longos passeios ao domingo,
noites que podem ser manhã
e jardins suspensos na luz do Sul.
Aqui posso ser quem estou,
assente num corpo feito sinal da procura,
onde versos e versos me levam ao segredo,
porque há pedaços de desejo e restos de música.

E assim vamos sendo quem sempre fomos

E assim vamos sendo quem sempre fomos,
quando o tempo nos dá espaço de saudade
futura
e a água, amarga de sal,
nos faz mais vida, braços, areias
e ondas bravas amainando
a fúria do sol.
Podemos, então, colher coentros
e pescar anchovas,
ter a sombra fresca dos pequenos pinheiros
e olhar as pedras de um cais
que sempre foi partida.
Para que nasça sempre um novo dia
no alto das arribas da própria vida,
dobrando a raiva que sofríamos
e vencendo a névoa amarga
dos tempos de renúncia.

Vamos sendo quem sempre fomos

São nebulosos sinais como a espuma das ondas
em seu vaivém,
pedaços de alma que o corpo vai guardando
quase sem porquê,
quando é a própria caneta que assim me vai moldando.
São palavras escritas em muitas cores
de outros tantos marcadores,
como dantes eram os aparos e os tinteiros,
os vários instrumentos com que me vou gerando,
cada um deles com o seu próprio formato de letra.

Contudo, apesar da variedade,
há sempre uma linha de fundo
que me dá identidade.
E assim se vai meu tempo que passa,
nestes cadernos que são sinais
de um caminho que hei-de voltar a percorrer,
todos os dias.
Especialmente quando o breve frio cinzento
nos faz apreciar
os intervalos solarengos
que nos dêem a cor íntima
dos lugares de que somos peregrinos.

Quando a água, amarga de sal, nos faz mais vida

Aqui e agora, esperando que a luz do sol
Possa vencer as densas nuvens da manhã,
esperando que o calor do dia que vai nascendo
dissipe a carapaça húmida e cinzenta
que, do mar, nos vem chegando.
E olhando assim por dentro de quem sou,
vou sentindo, em sonho, o pensamento,
sem me perder no desassossego
de quem não quer viver por si,
dentro de si.

É que, às vezes, sou menos do que sou,
quando, ao pegar na caneta, diante de um papel,
não consigo atingir o ritmo
daquela escrita quase automática
que vai fluindo por dentro de mim mesmo,
correndo livremente, como água na fonte da montanha.
Sinto que, de vez em quando, me vou imaginando em ritmo,
nestas reportagens íntimas,
onde procuro captar os meandros de bruma
de quem sou parcela.

Apesar de haver sempre as mesmas ideias,
as mesmas metáforas,
as mesmas frases,
as mesmas palavras.
Como se outrem se escrevesse através de mim,
nesta compulsão da palavra por cumprir,
neste desvelar das secretas vozes
que vão conflituando e gerando
o doloroso prazer dos muitos cadernos, agendas e blocos
que, não sendo propriamente diários,
estão intimamente ordenados.

Nosso destino não é chegarmos ao próprio fim

Nosso destino não é chegarmos ao próprio fim,
cumprindo planeadamente uma qualquer rota
que outros nos tenham delineado.
Nossa missão é caminharmos,
sentirmos o prazer da caminhada,
plenos de sonho, plenos de mar
E assim vamos continuando a ser cigarras,
sem qualquer vocação de formigueiro.
E serenos nos vamos deitando
nas areais do silêncio,
olhando os pequenos fluxos de vapor
que, das ondas, se desprendem,
nesta praia de sentir escorrer o tempo,
sem o stress de quem sofre sem porquê.
Apenas apetece que este tempo não passe,
para ficarmos aqui para sempre.
E não apenas por causa do lugar.
Os lugares em si, de pouco valem.
Valem mais os olhares
com que os encaramos.

Correntes de geração

Para que os grandes escritos possam emergir,
são precisos muitos escritos menores
como aqueles em que me perco.
Que eles apenas servem como elo
de uma corrente de geração,
nesta simples missão de recolector e transportador
de sementes que, noutros, hão-de frutificar.

A cultura é precisamente o inconsciente fruto maduro
que o curto prazo da nossa vida terrena
não permite vislumbrar.
Que outros virão depois de nós
E, neles, o nosso eu se realizará
na mesma procura do eterno,

Porque eu apenas transmito
o que outros, antes de mim, deixaram.
Todos somos muitos outros
que em tempos passados semearam
a emergência de quem somos
e nossas mãos de escrita apenas existem
para se entregaram a uma missão.
Porque outros serão, depois de nós,
o nosso sonho
e neles nos devemos diluir
em plenitude.

Nós e aquilo que temos a ilusão de criar
não passamos de mera poeira de um caminho
que nossos vindouros hão-de calcorrear.
Apenas somos parcela
da longa corda de transmissão
de um sinal de sonho.
E é assim servindo
que poderemos conquistar a eternidade,
mesmo que ninguém o registe
em qualquer nota de pé de página.
No intervalo, apenas seremos compreendidos
Pelos companheiros de procura
mesmo que deles se não recebam
anónimos sinais de irmandade.

Quem tem a consciência de assim estar vivo
sabe sentir o silêncio dos que, em fidelidade,
com ele comungam do mesmo ideal de vida.
Apesar de nos podermos sentir sós,
sabemos, intimamente, que muitas outras mãos
nos querem dar as suas mãos de escrita.
Quem tem a força de uma convicção
plena de sentido,
sabe que poderá continuar a ter o prazer de caminhar
e de sentir que a beleza o há-de iluminar.
Há sempre um largo espaço de mar
que poderemos sulcar.
Há navegações por fazer.
Ilhas por descobrir.
Cabos negros por varar.

No dia em que um vaivém chegou são e salvo

Apetece reparar que o belo sonho do catecismo dos industriais
e as maravilhas da ciência e da tecnologia
produzidas pelo positivismo e pelo pragmatismo
tanto nos deram a NASA como Hiroshima,
enquanto por cá apenas produzem caricaturas engenheirais,
de mangas arregaçadas,
prometendo-nos betão e túneis,
assim demonstrando a distância que nos separa das alturas.
Que bom seria não haver guerrilha
nem terrorismo
e que a nossa governação pudesse ser gerida
por um qualquer mecanismo,
nomeadamente por um computador.
Que todo o mundo se reduzisse ao papel quadriculado
de um projecto de barragem,
sem as eternas maluquices a que não conseguimos dar resposta,
como a adoração dos deuses, ou de um só Deus,
as coisas simples do amor
ou as paixões cívicas que metem pátria,
ideologia, camaradagem ou amizade.
Que bom seria sermos todos categorias, abstractas e quantificáveis,
susceptíveis de planeamento,
sem as loucuras dos que ainda citam Platão,
Confúcio,
Cristo,
Rousseau
e Marx...
Infelizmente, continuo a cravar as minhas farpas
no dorso das vacas sagradas,
no meio das muitas chocas
que se fingem gado bravo.

Hoje não apetece falar nas guerrazinhas de homenzinhos
e nas golpadas de salão em que se enreda a política doméstica.
Ainda bem que há um vaivém que regressa
do infinito espaço de que somos parcela.

Ainda bem que ainda podemos ir além,
em descoberta,
esquecendo que por cá ainda restam
a pobreza,
a injustiça,
a doença
e a fome.

Ainda bem que a humanidade pode ter a ilusão
De, a si mesma, se superar,
embora, todos os dias, não consiga
ir além dentro de si.

Por momentos, todos podemos ser
tripulantes de um qualquer vaivém,
reentrando na atmosfera,
depois de uma viagem além de nós,
assim vencendo a má lembrança
de outra nave em que morremos,
no regresso,
por causa de um qualquer grão de espuma
na engrenagem.

Dura mais a palavra procurada do que o prazer do poder


Dura mais a palavra procurada
do que o prazer do poder,
esse mandar nos outros pelas pequenas vaidades.
Dura mais o sonho do que o cartão de crédito.
Dura mais o que secretamente nos prende.

Amar é o preciso contrário de mandar.
Não quero mandar nos outros, prefiro amar.
Quando me entrego, sou corrente
dinâmica que não se sente
e que, profundamente, me transforma
em simples parcela da humanidade.
O que será para sempre
não é o que mediaticamente se sente,
captando o que apenas é vaivém.

E é mais belo o acaso de um olhar
que a paisagem possa retratar,
esse momento breve da criação
quando o nosso eu consegue
prender coisa com coisa
e sorver as circunstâncias
que para isso nos rodeiam.
Esboçando o sentimento de um olhar,
compondo um som que nos vá inspirando,
ou fazendo, do sentimento,
as linhas tracejadas de um verso
que um poema por fazer possa conter.

Diante do mar, diante do tempo

Diante do mar, diante do tempo,
quão pequeno me sinto,
perante o que será sempre igual.
Nesta brevidade do humano tempo de vida,
onde apenas é eterno o transcendente
e o semear.

Onde estas linhas que escrevo irão durar
mais do quem as escreve.
Se os papéis resistirem.
Se as palavras valerem para guardar.
Se amanhã alguém, ao lê-las,
sentir que é um pedaço de quem sou agora.

Eterno é também o sentimento que outros possam sentir.
Sobretudo, o amor profundo,
o que, de mais divino, tem o transitório
de nossa breve passagem pela chamada vida.
Que nosso corpo e nosso nome apenas duram
naquilo que aos outros pudermos dar em plenitude.

Soldado de crenças que sempre procurou servir

Aqui fica o registo dos pequenos passos que vou dando,
dos sinais de entrega que me diluem,
das causas e correntes que segui,
como soldado de crenças
que sempre procurou servir,
como militante anónimo de algo que vai além de mim.


Apetece partir para o tempo
de não sofrer mais tempo.
Há causas que outros,
por mim, hão-de cumprir,
que eu apenas por aqui resisto,
em nome daquela profunda corrente
que sempre foi além de mim.

Esta dor, esta revolta

Sei que os meus escritos sofrem daquela saudosa melancolia,
típica dos que, não tendo perdido o sonho,
sentem o corpo sitiado pelas realidades de uma pátria que já não há.

Muitas vezes não me apetece escrever
sobre coisas políticas e sociais,
indo à raiz das palavras que me desnudam.
Porque, às vezes, a escrita é intimista demais,
para que outros a possam peregrinar.

Continuo a seguir esta viagem de viver
por dentro do temporal.
Mas comigo, segue uma longa tristeza.
Pessoal, familiar, patriótica.
Num tempo de crise em que me confundo
com os próprios destinos do meu povo.
Sobretudo, neste meu tempo
de questionar a aventura de escrever-me
e de escrever para os outros.
Esta interrogação sobre se vale a pena
meu continuar a insistir sobre o que sonho,
nesta permanente viagem à volta de mim mesmo,
esta dor, esta revolta.

Quão longe me sinto destes meus vizinhos conformistas,
sempre à procura da exacta consequência
que deriva do paralelograma de forças
onde se inserem
e de que são consequência.

Não pode ser esta a postura dos que ousam a insolência
e continuam à procura da autenticidade.
Por isso, aqui e agora, eis-me
na hora de continuar a viajar dentro de mim,
de procurar, por entre a bruma,
sinais que me possam libertar.

Às vezes, a escrita é intimista demais

Às vezes, a escrita é intimista demais,
para que outros a possam peregrinar.
Especialmente quando escrevemos dessas palavras
que só podem ser escritas quando estamos sozinhos em casa
e assim podemos cumprir os tais necessários intervalos
de íntimo silêncio,
desligando o computador, as imagens e os sons.

Escrevendo sem porquê, para que, palavra a palavra,
nos libertemos, das angústias aos sonhos,
dos medos à esperança,
respirando todo o espaço dessa mais profunda liberdade
que é procurarmos olhar por dentro de quem na verdade somos,
nesse sonharmos e pensarmos, aqui e agora,
sem termos ninguém à beira
e até sem ousarmos confessar por escrito
aquilo que o corrupio das palavras nos suscitou.

Estas palavras de um lirismo lusitano


Sempre estas palavras de um lirismo português,
estes ritmos quase automáticos
de um sonho por cumprir.
que nem eu próprio sei.
Quando o tempo me dá sinais
desse mar que há-de ser
e o vento que me leva
à flor que há-de vir
quando meu sonho
for para sempre.

Há um tempo que apetece
e há-de ser,
na manhã que semeamos dentro de nós.

Não, não digas mais de mim, em singular
mas da corrente que funda nos aprofunda,
quando o mar não dói dentro da espera
do que teu signo me trouxer
e o tempo que moldámos nos disser:
que venham rios de bruma,
que o tempo todo nos traga as arribas do medo.
Olharemos de frente o sol do tempo.

Há um mar por descobrir



Há um mar por descobrir,
um cais de partida,
uma tarde sem fim.
E, à beira de quem fomos,
podemos largar mar dentro
numa viagem sem destino,
fingindo quebrar amarras
sem os prazeres previstos
com que nos engana a aventura...

Qualquer coisa que, de mais além, me prende


Sinto que há qualquer coisa que, de mais além, me prende,
neste processo de viver, nesta prisão de procurar.
Porque mesmo quando me deixo perder
nos meandros da leitura de um romance,
a minha imaginação vai enchendo de desejos
os quadros abstractos da ficção.

Vai dando corpo à etérea procura
que marca o ritmo desta vida sem porquê,
só porque é alto o desígnio que me movimenta,
esta dispersão aparente de quem só consegue explodir
quando se deixa abrasar por um sistema mobilizador.
E há palavras que me prendem
a esse qualquer coisa de muito íntimo
que me faz desenrolar em viagem.

Quando as próprias descrições da ficção despertam as vivências
que me arrastam nesse abraço do impossível,
onde não há cilício de racionalidade
que consiga deter o prazer de certas memórias de vida.

Falta ainda muita viagem por cumprir


Quando pudermos dizer, como Pessoa, "tudo pela humanidade, nada contra a nação", mas desde que cada nação seja entendida como caminho para "uma super-nação futura".


Falta ainda muita viagem por cumprir
para que os homens de boa vontade
possam varar as tormentas
e procurar a boa esperança
de um novo caminho
que nos dê humanidade,
quando o ser vencer o ter,
quando o amor vencer a guerra.

Quando tratarmos o nosso outro
como o próximo,
o vizinho,
o conterrâneo,
o compatriota,
o irmão.

Quando, sem negarmos as pequenas pátrias
e as grandes pátrias, soubermos ascender à terra dos homens,
à cosmopolis

Quando vencermos os impérios que nos invadem,
de forma visível e invisível,
pelo mercado
ou pela colonização cultural.

Quando, de mãos livres,
pudermos ter fé no homem,
no seu destino
ou no seu transcendente.

Quando o abraço armilar nos voltar a aquecer.

Não, ainda vivemos nas guerras civis ideológicas,
nas guerras frias culturais,
e, sobretudo, nas guerrazinhas de homenzinhos,
desses que são marcados pela vontade de poder,
nesta anarquia mansa que, subterraneamente, nos amarfanha
pelas longas teias da cobardia,
que geram as sucessivas ditaduras
do situacionismo e da incompetência.


Insurge-te
contra este mais do mesmo,
desobedece
aos compadres e comadres desta partidocracia,
não admitas que, no espaço público,
em nome das razões de Estado,
se pratique aquilo que rejeitas
em tua casa,
na tua família,
na tua rua,
na tua terra.
Volta a ser um homem livre,
não tenhas medo!

Lá em baixo ficou o meu heterónimo


Lá em baixo ficou o meu heterónimo
cidadão da República Portuguesa,
com o filofax cheio de compromissos
e alguns impostos para tratar.
Lá em baixo ficaram suspensas
as cadeias que me ligam às abstractas entidades do senhor Estado,
do senhor emprego
e à rotina estonteante de querer ser fiel
a uma família clássica numa sociedade de consumo,
quase afluente,
que é tão individualista quanto colectivista,
mais marcada pela violência do Leviathan hobbesiano,
pai do capitalismo e do estadualismo
do que pelo messianismo de Marx
ou pelo romantismo de Rousseau.

Por lá ficaram os cartões de plástico
que me situam nas teias de controlo do big brother
desse totalitarismo suave em que nos vamos escravizando,
do número fiscal, ao cartão multibanco,
da carta de condução às fichas dos seguros,
esses inúmero dígitos que nos procuram localizar,
prender, sitiar.
Apenas quero um breve intervalo de tempo
onde procure esquecer as coisas que todos os dias tenho de fazer, num quadriculado de horários, agendas, deveres,
prazos, projectos, programas e frustrações.

Mas o tempo não está para filosofices ou politiqueirices,
mas para sentir os pormenores da paisagem.
Ter a liberdade de um pássaro peregrinando a paisagem,
acariciar o chão de caruma
e percorrer o espaço destas matas que nos restam.
E, navegando a manhã, vou deitando para o lixo
o odor dos sonhos negativos que me atormentam.

Porque apetece continuar feliz
e poder olhar os outros, olhos nos olhos,
sem o calculismos dos que encenam
aquelas parecenças que destroem as chamadas relações sociais. Apetece esta saudade de mar,
as ondas pequenas do bom tempo,
a limpeza das areias infinitas
e os passeios na maré baixa, de falésia a falésia,
assim diante de quem sou.